No final do século dezoito, no lugar de Valverde, vivia um pobre moleiro com a mulher e uma filha ainda moça e muito bonita.
Numa
noite de luar, a rapariga desapareceu de casa sem deixar rasto e nunca
mais foi vista. Houve quem dissesse que ela se tinha deitado ao mar, mas
muita gente acreditava que as bruxas a tinham encantado
O tempo
foi passando e a tragédia do desaparecimento da filha do moleiro era
contada aos serões a mistura com histórias de almas penadas e
feiticeiras.
Num lindo dia de Primavera, passados cerca de cem
anos, as lavadeiras foram com a roupa suja para a ribeira, como de
costume. Uma delas, mais velha, não teve tempo para lavar tudo, embora
tivesse esfregado e espanejado de sol a sol. Continuou o trabalho quando
a noite caiu, porque a lua estava clara como se fosse de dia.
Para
passar o tempo e disfarçar o medo de estar sozinha, ia cantando.
Subitamente o som da sua voz e o ruído dos grilos foram cortados por
gritos profundos que apenas duraram um segundo. Quando tudo tinha
voltado ao silêncio e a lavadeira ainda estava muda de medo, de novo se
ouviram fortes gemidos.
— Santo nome de Deus! Senhora dos Anjos,
amparai-me — gaguejou a velha lavadeira e, levantando um pouco a voz,
conseguiu dizer a tremer:
— Alma penada ou gente deste mundo que
tanto pareceis estar sofrendo, dizei-me onde estais para que vos possa
ajudar se isso estiver ao meu alcance.
Ninguém lhe respondeu, mas
ela avançou pela margem da ribeira e, quando ainda não tinha dado vinte
passos, parou espantada. A ribeira estava linda e pousada sobre ela via
se uma rapariga bonita e completamente nua. Parecia envolvida num manto
de luz e os cabelos brilhavam como oiro sobre os ombros brancos e
macios. A mão esquerda estava fechada, mas na outra tinha um fuso que
girava, enrolando um fio de prata. Dos olhos azuis corriam lágrimas.
A
lavadeira ficou completamente assombrada e só quando por um ruído leve a
visão desapareceu é que a mulher teve coragem de dizer:
— Donzela
infeliz, talvez encantada por mau olhado, atende as minhas palavras Se
és aquela de quem muitas vezes ouvi falar em pequena, aos meus avós,
tudo farei para te ajudar.
A visão apareceu de novo e os lábios vermelhos, mas com um sorriso amargo, disseram meigamente:
—
Sou aquela menina infeliz que vossos avós conheceram, mas não posso
dizer-vos como foi o meu encantamento. Estou há mais de um século neste
martírio, aparecendo de sete em sete anos, neste dia e na hora em que
fui encantada, à espera de um rapaz virgem que me possa esconjurar e a
quem pertencerei.
Depois de dizer estas palavras, abriu a mão esquerda, mostrou três moedas de oiro e desapareceu.
A
lavadeira voltou para casa já tarde da noite, o céu estava coberto de
nuvens e no dia seguinte o estranho acontecimento espalhou-se.
Passados
sete anos, vários rapazes de Valverde foram-se sentar nas margens da
ribeira com a esperança de ver a moça, mas ninguém a viu e sem se saber
porquê a donzela lá continua encantada.
FURTADO-BRUM, Ângela
Açores: Lendas e outras histórias
, Ponta Delgada, Ribeiro & Caravana editores, 1999, p.48-49
Recolhida em Vila do Porto, Ilha de Santa Maria, (Açores) [data dos finais do século XVIII]
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